terça-feira, janeiro 30, 2007

ciência e a arte de falar simples: uma tentativa


De volta depois de 2 meses...

Texto inspirado no tema de janeiro para o blog Roda de Ciência: a arte de falar simples


Nunca fui escoteira... mas sempre quis ser. Conheci a prática do escotismo através da intensa convivência com amigos “lobinhos” - denominação dada às crianças de 7 a 10 anos que praticam escotismo - durante a minha infância e que se estendeu até a adolescência. Mas na minha época, ao invés da matilha, a opção feminina para o grupo escoteiro eram as Bandeirantes... também não fui bandeirante por nutrir algum preconceito, confesso: diziam que aí se praticavam atividades associadas a costura e cozinha (mal sabia eu o benefício de me habilitar nestas práticas, que agora me faltam...) e achei que estava muito distante do sonho da aventura de acampamentos e excursões na “selva”, no manejo de canivetes, cordas, lanternas e fogueiras, no contato com a natureza e no trabalho – e diversão – em equipe.

- E o que tem isso a ver com o tema “a arte de falar simples”?

A conexão se fez quando fui convidada para dar uma palestra sobre quem é o biólogo para um grupo escoteiro há quase 10 anos atrás. Senti-me tentada a aceitar o convite pelas razões “históricas” reveladas acima. Devo esclarecer que há no escotismo uma diferenciação de “patentes”, a partir dos ternos “lobinhos” até o “chefe-escoteiro”, e cabe ao escoteiro cumprir determinadas tarefas para receber um grau “superior”. Uma destas tarefas era “entrevistar um biólogo”, e para inovar, o escoteiro desta história, optou por apresentar um biólogo em “carne e osso” (no caso, eu) para a turma. E aí surgiu a oportunidade e a necessidade de adaptar o discurso acadêmico ao formato do “falar simples” para divulgar a ciência feita pelo biólogo. Será que o escoteiro poderia imaginar que a conversa seria sobre a vida e a arte das moscas varejeiras?!

O que parecia uma tarefa simples se transformava num desafio cada vez maior à medida que crescia minha consciência do abismo que pode haver entre estas duas linguagens de divulgação, a acadêmica e a informal. Por isso mesmo é preciso um artista para mediar esta transformação do conteúdo, e nem todos somos Charles Chaplins capazes de traduzir a complexidade da vida humana e suas relações através de obras primas que se revelam para todas as idades e “escolaridades”, numa linguagem “universal”.

Munida de um puçá*, um pôster, uma gaiola de moscas e mais algumas surpresas (como larvas e pupas), fui ao encontro deste desafio. Foi um começo meio desafinado, que foi se transformando conforme via os rostos das crianças e adolescentes respondendo ao mundo novo – do biólogo – que ia sendo apresentado ali. A curiosidade é realmente uma aliada inestimável para o divulgador de ciências e, escoteiros, além de sempre alertas, são criaturas extremamente curiosas (até por serem crianças!). Claro que uma gaiola cheia de moscas verdes e um “tupperware” com carniça e larvas esfomeadas foram elementos importantes para despertar essa curiosidade, seja pelo interesse no sistema biológico em si ou pela perspectiva “meio nojenta” – para quê serve isso?

*Visto que o tema é “falar simples”, fica o esclarecimento: puçá: ferramenta formada por uma vara e uma redinha de filó presa ao redor de um aro que serve para capturar pequenos insetos (classicamente associado à captura de borboletas, mas também serve para pegar moscas! ver foto do "post"); larvas: “filhotes” de moscas (fase do ciclo de vida da mosca, popular “verme”); pupa: casulo (fase do ciclo de vida em que ocorre a metamorfose, transformando a larva em mosca adulta).
Tupperware: potinhos de plástico com tampa que revolucionaram os anos 80!

Foi uma experiência inesquecível! Mostrar o ciclo biológico de um organismo, falar de classificação taxonômica, comentar o que são relações filogenéticas (não vale dizer que mosca varejeira “é prima” da mosca doméstica), que mosca tem DNA (inclusive na mitocôndria – mitoquê?), que DNA é uma estrutura dinâmica que conta histórias, histórias evolutivas reveladas por marcas que são passadas por gerações... isso tudo tão fascinante!

E como funciona isso? Interrompe uma pequena apontando para o puçá.

E dá-lhe procurar um inseto para que todos vejam um biólogo em ação. Sorte a minha eu ter conseguido pegar uma micro-mariposa (único inseto voador que assistia à palestra), enquanto me esforçava para não comprometer a figura do biólogo... mal sabiam eles que minhas habilidades com a pipeta (micropipeta, para ser exata) e um tubo eppendorf superam em muito minha desengonçada performance com o puçá (até porque pegar moscas varejeiras com puçá é tecnicamente mais fácil do que pegar mariposas ariscas).

Mas, apesar de divertido, descobri que o “falar simples” é uma tarefa complexa, e sendo arte, requer talento, dedicação e inspiração. Ser simples ao falar de ciência não é o mesmo que ser simplório... ou seja, existe uma linguagem científica, onde diferentes modalidades da ciência adotam termos próprios, o conhecido jargão, para definir conceitos e se expressar da melhor forma possível. O “falar simples” deveria traduzir completamente a linguagem científica? Acho que não é bem assim. No meu mundo ideal, o “falar simples” seria uma ponte para transportar o interessado (ou leigo?) para esse mundo particular, sem “facilitar” a ponto de entediar, nem improvisar a ponto de deturpar a informação. A linguagem científica se utiliza de termos próprios e desconhecidos do público geral para tentar traduzir a própria natureza, assim como Saramago nos provoca a consultar o dicionário para trilhar seus densos – e inspirados – escritos. A arte do “falar simples” está no sucesso de uma divulgação científica que não violenta a linguagem científica, que acrescenta conhecimento àquele que lê – promovendo uma ampliação do universo deste – atraindo-o para uma outra dimensão. Ser um divulgador de ciência não é ser um tradutor, é ser um artista.
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